Entre o documentário e o ensaio visual, o vídeo procura identificar as dinâmicas existentes entre os personagens que habitam hoje os moinhos desativados do Leça e as águas daquele que foi o rio mais poluído da Europa.
categoriaS
#criação artística #exposição
EXPOSIÇÃO COLETIVA
Un rastro de furia e algas
CURADORIA
Federico L. Silvestre, María Gil Martínez e Sergio Meijide Casas
local
Salón Artesoado do Colexio de Fonseca, Santiago de Compostela (Espanha)
DURAÇÃO
19 de Outubro de 2023 — 27 Janeiro de 2024
EQUIPA
Alexandre Delmar & Maria Ruivo
Contexto do projeto
O vídeo "O Lodo Ensina a Dançar" surge da encomenda do atelier curador Summary para o Mês da Arquitetura da Maia'23, um evento anual inteiramente dedicado à arquitetura no território da Maia. A exposição coletiva, intitulada Em Processo, que inaugurou esta edição do MAM, apresentou-se como uma ode à mudança, à evolução urbana e às dinâmicas sociais e económicas de que este município é hoje palco.
Em Processo fez o registo em tempo real de algumas das principais intervenções que estavam a decorrer à data ou que estavam programadas a breve prazo no município, com destaque para os projetos de índole pública. Arquitetos, assim como profissionais de outras áreas disciplinares, foram convocados a apresentar as suas leituras sobre essas transformações, compreendendo-as, explicando-as e complementando-as.
Cada autor foi convidado a refletir e a desenvolver a sua obra crítica a partir de um projecto/ação em curso na Maia. No caso da Recoletora foi-nos atribuído, como ponto de partida para a criação, o Corredor do Rio Leça, um plano de restauro ecológico e de mobilidade criado pelos Municípios de Santo Tirso, Valongo, Maia e Matosinhos, que pretende promover a utilização pública do Rio Leça.
SINOPSE DO Vídeo
O ponto de partida: a ecologia espontânea que desponta da arquitetura industrial em degradação, nomeadamente da fábrica têxtil Sampaio Ferreira & Cia. Lda. em Riba d'Ave, no concelho de Vila Nova de Famalicão, Portugal;
O ponto de chegada: um exercício artístico de arqueologia ficcional que permite uma visualização do fluxo vivo desta ruína fabril e das metamorfoses existentes entre os materiais abandonados pelo homem, a vegetação ruderal e os fungos, como exemplos de resistência, liberdade, diversidade e aprendizagem para acessar novas formas de co-habitar a cidade e criar novos padrões de existência entre espécies.
A ruína industrial, enquanto espaço expectante e marginal, tem a capacidade de albergar as espécies vegetais que tendem a ser excluídas dos espaços públicos regulamentados. Nesse processo de apropriação, combina-se a emergência da vegetação selvagem à ausência do domínio humano, gerando-se novos espaços e habitats, que na sua constante fluidez e mutação, nunca permanecem os mesmos.
À flora que nasce espontaneamente e de forma resiliente nestes meios fortemente antropizados, designa-se de ruderal. Esta vegetação ruderal tem as qualidades da indeterminação, do acaso e da aleatoriedade, trazidas pelas dinâmicas do vento, dos pássaros, da água ou da temperatura. Falamos, acima de tudo, de musgos e de pequenas plantas herbáceas, mas também de fungos, espécies que, de um modo geral, são altamente resistentes, adaptáveis e cujos processos sucessivos de florescimento-morte-florescimento e de decomposição, geram um ecossistema dinâmico e diverso, liberto do funcionalismo e da normatividade típica da paisagem urbana.
“A emergência da raiz” é um projeto que procura observar, recolher, documentar, analisar e especular a evolução deste ecossistema não humano, tomando como local de estudo a fábrica Sampaio Ferreira & Cia. Lda. localizada em Riba d'Ave, que foi uma das primeiras unidades fabris da Bacia do rio Ave. Construída em 1896 pelo empresário Narciso Ferreira, tornou-se a maior e mais completa empresa têxtil algodoeira do país, contendo fiação, tecelagem e tinturaria numa área de implantação com cerca de 35 mil metros quadrados, fazendo pela primeira vez o aproveitamento hidráulico para produção de energia para acabamentos têxteis (numa central própria que ainda hoje funciona e abastece outras empresas da região) e tendo mais de 2 mil funcionários.
Esta fábrica, como muitas outras no norte de Portugal, entrou num processo de falência — motivado por má gestão, conflitos com os trabalhadores, greves por salários em atraso, a necessidade de modernização, o aumentos dos custos e a agressiva concorrência dos países do Oriente, para onde grande parte da maquinaria têxtil portuguesa acabou por ser vendida —, encerrando por completo a sua atividade em 2005. Desde então, este complexo edificado foi deixado ao abandono, tendo sido habitado por diversos organismos que, progressivamente [e se lhes for permitido], o transformarão numa floresta.
Partindo desta ideia subjacente de decadência como laboratório da vida, observa-se a extraordinária capacidade de devir deste ecossistema e destas espécies. As bobinas de algodão natural são locais de florescimento e, por consequência, de decomposição vegetal; A matéria-prima é apropriada pelos pássaros para construção de abrigos; Os fungos e musgos ocupam diferentes tipos de estruturas como paredes, chãos, muros ou pequenos papéis — os processos de decomposição que induzem manifestam-se na superfície das coisas e as suas cores são objeto de análise, usando-se para o efeito uma base cromática neutra, o cinza de 18%; O rio Ave, que corre justaposto à fábrica e que chegou a ser um dos mais poluídos da Europa na década de 80 pelas constantes descargas diretas das têxteis da região, é hoje o fluxo energético que alimenta a biodiversidade da fábrica que, paulatinamente, quer voltar a ser selvagem.
Talvez sejam estes espaços intersticiais da cidade, onde a resiliência e as reservas de biodiversidade estão libertas do jugo da geometrização, da higienização e do controlo imposto ao jardim urbano, o motor para imaginar experiências, significados e práticas alternativas que nos ajudem a romper tabus de coexistência e a repensar novas propostas de espaços vivos na paisagem urbana.
[1] Segundo as obras “Moinhos de Leça” (2010) e “Moinhos da Maia, no Leça e noutras linhas de água” (2013), publicadas pelo Clube UNESCO da Maia, contabilizam-se 16 moinhos no concelho da Maia, junto ao rio Leça. Estes engenhos que antigamente moíam os cereais, principalmente o milho e o centeio, tirando partido do “curso de água caudaloso e constante do Leça”, são as estruturas arquitectónicas que povoam em maior número as suas margens, e o elo físico entre o passado e o presente que escolhemos explorar no vídeo “O lodo ensina a dançar”.
[2] Junto à Ponte da Rua de Pinto, na freguesia de Milheirós, existem dois moinhos, o “Moinho com telhado de granito” e a “Casa dos Sete Moinhos”. O “Moinho com telhado de granito” era uma edificação pequena mas sólida feita integralmente em pedra, incluindo o teto, uma particularidade que lhe permitia resistir às cheias mais violentas. Segundo testemunhos locais, ficou submergido várias vezes. Com apenas 4 rodas, situa-se na margem direita a uma cota baixa e moía quando o caudal do rio era pequeno; Em oposição, a “Casa dos Sete Moinhos”, na margem esquerda, era uma construção que comportava 4 moinhos de rodízio de 2 pisos, num total de 23 rodas, o que lhe permitia operar também em situação de cheia.
[3] São várias as terminologias usadas pela população para classificar o rio Leça em diferentes épocas e estados: “o rio indomável”; “o rio instável”; “o rio macaco”; “o rio vermelho”; “o rio amarelo”; “o rio que muda de cor”; “o rio espuma”, “o rio cadáver”, “o rio esgoto”, “o rio humanizado”, “o rio encanado”, “o rio emparedado”, “o rio do esquecimento”; “o rio meio esquecido”.