Entre o documentário e o ensaio visual, o vídeo procura identificar as dinâmicas existentes entre os personagens que habitam hoje os moinhos desativados do Leça e as águas daquele que foi o rio mais poluído da Europa.
Tipologia do Projeto
#artístico #encomenda
categoriaS
#vídeo #investigação #território
Encomenda e CURADORIA
MAM — Mês da Arquitetura da Maia, Atelier Summary
local
Fórum da Maia
Organização
Câmara Municipal da Maia
DURAÇÃO
10 de Março — 30 de Abril de 2023
EQUIPA
Alexandre Delmar e Maria Ruivo
AGRADECIMENTOS
André Tomé Ribeiro, Eduardo Ferreira, Manuel Silva, Corredor do Rio Leça — Associação de Municípios
Contexto do projeto
O vídeo "O Lodo Ensina a Dançar" surge da encomenda do atelier curador Summary para o Mês da Arquitetura da Maia'23, um evento anual inteiramente dedicado à arquitetura no território da Maia. A exposição coletiva, intitulada Em Processo, que inaugurou esta edição do MAM, apresentou-se como uma ode à mudança, à evolução urbana e às dinâmicas sociais e económicas de que este município é hoje palco.
Em Processo fez o registo em tempo real de algumas das principais intervenções que estavam a decorrer à data ou que estavam programadas a breve prazo no município, com destaque para os projetos de índole pública. Arquitetos, assim como profissionais de outras áreas disciplinares, foram convocados a apresentar as suas leituras sobre essas transformações, compreendendo-as, explicando-as e complementando-as.
Cada autor foi convidado a refletir e a desenvolver a sua obra crítica a partir de um projecto/ação em curso na Maia. No caso da Recoletora foi-nos atribuído, como ponto de partida para a criação, o Corredor do Rio Leça, um plano de restauro ecológico e de mobilidade criado pelos Municípios de Santo Tirso, Valongo, Maia e Matosinhos, que pretende promover a utilização pública do Rio Leça.
SINOPSE DO Vídeo
Há uma dança poética no ato de limpar e de cultivar, um movimento mais ou menos certo, ritmado, repetitivo, inconsciente, entre a ação do corpo que se adapta ao espaço e o gesto das mãos que purificam e semeiam, impondo a ordem. A limpeza e o cultivo como performances improvisadas expressam a vontade explícita de organizar o caos, através da qual o Homem atenua também a dor da sua própria mortalidade: arrumar, ordenar, regrar, estruturar, lavar, arejar, sanear.
No vídeo que se apresenta, a matéria da limpeza e do cultivo é o rio Leça; os intérpretes que executam essa dança, o Guardião limpador de plástico e o Hortelão produtor de alimento.
Nas margens daquele que foi considerado o rio mais poluído da Europa durante a década de 90 e onde, ainda hoje (2023), abundam mais plásticos que peixes, encontramos estes dois bailarinos que, entre muitos outros, executam as suas danças a partir das ruínas que habitam. São atos individuais de cuidado, de restauro e despoluição, de criação de ordem na desordem, mas sobretudo são formas de protesto contra o desleixo do rio e o desaproveitamento da terra. As performances têm lugar em zonas lodosas e em moinhos abandonados [1] que, graças às mãos e ao esforço destes dois bailarinos, foram transformados em espaços onde se evoca a vitalidade perdida da água, se redefine a ideia de propriedade e se afirma a autonomia alimentar e o direito ao sustento.
Como cuidador que é, o Guardião limpador de plástico limpa o rio todos os dias, removendo plásticos de forma compulsiva ao lado da sua casa, junto aos “Moinhos da Ponte da Rua Pinto” [2]. Entende o Leça como uma extensão da sua habitação e, como tal, passeia com os seus chinelos de quarto pelas pedras escorregadias e pelos moinhos das margens, em busca de resíduos.
Com a exceção da nascente, no monte Córdova em Santo Tirso, não há local mais limpo no Leça (a obsessão pela limpeza é, por si só, uma forma de energia). Junto ao local que entende ser da sua responsabilidade, muito pouco lixo segue para jusante: plásticos, ferros, madeiras, vidros, sacos de areia ou tijolos. Aqui tudo é parado, selecionado e retirado da água — tanto da superfície como da lama do fundo — através de ferramentas de metal compridas criadas especialmente para o ato de apanhar. São pequenos utensílios ou ganchos que lhe expandem os membros e permitem a dança da limpeza de forma mais fluida. As pedras junto à ponte estão gastas, não só pela violência da queda da água, mas também pela cerda da vassoura do Guardião, que nelas impõe o seu baile de polimento, asseio e soberania. O rio é a sua casa, e há que mantê-la limpa.
A nostalgia causada pelas lembranças de um Leça salubre é outra força motriz que justifica esta ininterrupta energia para a higienização do rio. A nostalgia dos tempos em que as suas margens eram vividas, animadas pela pesca e pelas hortas, pelas lavandeiras que vinham do Porto lavar e corar roupa nas pedras, por passeios em barcos de recreio, mas também por barracas coloridas, banhistas, mergulhos e escolas de natação. Muitos guardam memórias de infância do Leça como estância balnear, para onde artistas e intelectuais do Porto se deslocavam nos meses mais quentes, para usufruir das belas praias fluviais, escolhidas em detrimento das praias de mar de Matosinhos. Através da sua dança, o Guardião procura dissipar o passado de contaminação ligado à indústria têxtil (às tinturarias e estamparias) e à indústria da carne (de vacarias e matadouros), mas também o tempo não tão distante das descargas diretas de esgotos e ETARs. São tentativas que exprimem a visão esperançosa de um homem, aqui e agora, contra o descuido desmesurado de muitos, por dezenas de anos e ao longo de 44,8 km de rio.
Por sua vez, o Hortelão produtor de alimento ocupa as ruínas do Moinho da Quinta da Azenha e da capela adjacente, na margem esquerda do Leça, adaptando-as para cultivo e criação de galinhas. Inventa novos espaços, ferramentas e estruturas onde por muito tempo nada existiu: os buracos das antigas mós são agora sementeiras; das verguinhas enferrujadas para abrir comportas e dar mais velocidade à mó fabricou portas e suportes para os galinheiros; das bancadas de xisto antigas fez a zona para depenar os frangos e de uma mó vermelha partida, a base da fogueira para cozê-los. Aqui, como outrora, tudo é reaproveitado e transformado, numa lógica de desperdício zero fruto do engenho e da necessidade, tal qual o sabugueiro, que se adapta aos escombros da capela e cresce na sombra das pedras instáveis, fixadas pela trepadeira que impede o seu desmoronamento. Neste lugar ermo e severo, onde se plantam alfaces e pencas que o rio teima em levar, despontam também umbigos-de-vénus, urtigas e cimbalárias. Esta é a vegetação espontânea comestível que o Hortelão produtor de alimento ignorava existir e que constata, com estranheza, poder ser um sustento frutífero, sem esforço e sem cultivo.
Este inverno, como em todos os outros, “o rio indomável” [3] subiu abruptamente e destruiu os galinheiros, levou consigo as galinhas e os utensílios, inutilizou as sementes e as culturas. Mas tudo será reconstruído pelo Hortelão, tal como todos os outros anos. Desta forma, ele reafirma o seu solo sagrado e o seu protesto contra o rio, cujo abandono continuado põe em causa a sua segurança e autonomia alimentares.
É nesta resistência à água, à poluição, ao inesperado e à desordem que surge o gesto rebelde prometido pela limpeza e pelo semear. São estes corpos, animados pela energia da memória e da fome, que dançam fluidos no lodo, junto aos moinhos de água do Leça. São estes corpos que ensaiam uma concepção diferente de ocupação de solo, sem propriedade, que recuperam a ideia de um espaço gerido coletivamente, de um rio como bem comum.
É na voz deles e nas suas vivências nestes lugares que poderemos encontrar soluções para alguns dos problemas mais prementes da atualidade e serão as suas derrotas e vitórias que determinarão a verdadeira recuperação do rio Leça e da nossa própria humanidade.
Texto por A Recoletora
[1] Segundo as obras “Moinhos de Leça” (2010) e “Moinhos da Maia, no Leça e noutras linhas de água” (2013), publicadas pelo Clube UNESCO da Maia, contabilizam-se 16 moinhos no concelho da Maia, junto ao rio Leça. Estes engenhos que antigamente moíam os cereais, principalmente o milho e o centeio, tirando partido do “curso de água caudaloso e constante do Leça”, são as estruturas arquitectónicas que povoam em maior número as suas margens, e o elo físico entre o passado e o presente que escolhemos explorar no vídeo “O lodo ensina a dançar”.
[2] Junto à Ponte da Rua de Pinto, na freguesia de Milheirós, existem dois moinhos, o “Moinho com telhado de granito” e a “Casa dos Sete Moinhos”. O “Moinho com telhado de granito” era uma edificação pequena mas sólida feita integralmente em pedra, incluindo o teto, uma particularidade que lhe permitia resistir às cheias mais violentas. Segundo testemunhos locais, ficou submergido várias vezes. Com apenas 4 rodas, situa-se na margem direita a uma cota baixa e moía quando o caudal do rio era pequeno; Em oposição, a “Casa dos Sete Moinhos”, na margem esquerda, era uma construção que comportava 4 moinhos de rodízio de 2 pisos, num total de 23 rodas, o que lhe permitia operar também em situação de cheia.
[3] São várias as terminologias usadas pela população para classificar o rio Leça em diferentes épocas e estados: “o rio indomável”; “o rio instável”; “o rio macaco”; “o rio vermelho”; “o rio amarelo”; “o rio que muda de cor”; “o rio espuma”, “o rio cadáver”, “o rio esgoto”, “o rio humanizado”, “o rio encanado”, “o rio emparedado”, “o rio do esquecimento”; “o rio meio esquecido”.